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Por um fio, por Yvonne Miller

por Yvonne Miller
Arte: The Knitting Lesson, de Jean-François Millet.

Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Ed. Aboio, 2023).


Na época de pré-mudança fiquei especialmente irritada com uma caixa cheia de material de trabalho manual. Sabe esses volumes que ficam durante três anos enfiados embaixo da escada, acumulando poeira? Que ninguém nem se lembra o que tem dentro e só vai descobrir quando está arrumando as coisas para se mudar? Aí você abre o negócio e pensa “Valha, nem sabia que a gente tinha algo assim!”. No caso da caixa em questão eram bolas de barbante em todas as cores e espessuras, agulhas de tricô, um pote de 300 botões diferentes, tiras elásticas douradas em quantidades industriais e restos minúsculos de tecidos diversos, entre outras coisas parecidas e de utilidade duvidosa. 

— Realmente temos que levar esse troço de volta pra Fortaleza?
— Claro que sim, em algum momento a gente pode precisar.

Tentei todos os argumentos: desde “Mas ninguém nunca usa”, passando por “O apartamento lá é pequeno, temos que reduzir coisas”, até “Alguém pode estar precisando disso mais do que a gente”. Não adiantou, a caixa veio mesmo assim. 

Ontem de manhã, a voz alarmada da Larissa me tirou do sono.

— Yve, acorda. Ficamos trancadas.
— Como assim?
— Morena foi pro cursinho e trancou a porta.
— E cadê tua chave?
— No carro.
— E a minha?
— Também.
— Eita… E a chave do carro?
— Aqui. — Ela apalpou o bolso do short.
— Pelo menos algo. E o Chico?
— Doido pra fazer xixi.

Desde que voltamos pra cidade, o Chico tem direito a quatro passeios por dia: o primeiro logo cedo, só para visitar as árvores da nossa rua e deixar a gente tomar café da manhã em paz; o segundo perto do almoço, um rolezinho pelo quarteirão; o terceiro e maior à tarde – esse é pra gastar energia mesmo; e um último passeinho antes de dormir.

Só que agora o Chico, minha esposa e eu estávamos presos dentro do apartamento no quarto andar. Se fosse térreo, teria saído pela janela; tô nem aí pros olhares dos vizinhos. De todas as formas já me acham meio maluca por sempre andar de bom humor e cumprimentar todo mundo – onde já se viu? A Larissa me chama de vereadora do condomínio, só pra você ter uma ideia. Mas numa situação dessas também não adiantava nada ser a vereadora do condomínio. Talvez a chaveira do condomínio, aí sim. Mas o chaveiro mais próximo daqui fica no Cocó e com certeza ainda estava fechado. 

Eram sete e meia da manhã e o Chico já andava agoniado da Larissa para a porta e da porta para a Larissa. 

— Já sei, vou interfonar pro porteiro — disse ela de repente, com o rosto iluminado de quem acabou de ter uma ideia. — Oi, bom dia, quem é que tá aí? Oi Wellington, tudo bem? Olha só, a gente tá presa.

Entrei no banheiro e quando voltei a sair, ela estava terminando de falar com o porteiro.

— Barbante? Tenho, sim, claro. Tá, agora. Valeu! 

Enganchou o interfone, correu até o quarto da bagunça, localizou a caixa do trabalho manual, pegou uma bola de barbante e a levou até a varanda. Enquanto a chave do carro descia os quatro andares amarrada no final do fio verde em direção às mãos do Wellington, e pouco tempo depois subia de volta com a chave do apartamento junto, eu me senti como num filme infantil dos anos 90. 

Dois minutos mais tarde, o Chico puxava a Larissa pelas escadas e eu enrolava de volta o barbante, formando uma bola verde. Guardei-a na sua caixa no quarto da bagunça. Por enquanto vai ficar aqui. Quem sabe, em qualquer momento a gente precisa.

Fortaleza, 18 de maio de 2023


Arte: The Knitting Lesson, de Jean-François Millet.

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